Trans agredida e morta em Guaxupé foi enterrada como indigente, de vestido e cavanhaque

“É uma história de amor, amizade e de muita injustiça”, define a microempresária guaxupeana Ada Magno, que se tornou amiga de Mirele. Essa amizade inspirou o curta-metragem Leve-me na memória, Amiga, disponível no YouTube, no canal Coletiva.eco. O filme registra a carta de agradecimento para Ada e apresenta uma Mirele viva, realizada, alegre, como deveria ser.
Natural de Três Corações, o filho único Antônio Carlos Ferreira foi expulso da casa dos pais depois que se assumiu transgênero. Adotou o nome Mirele. Da terra natal até Guaxupé, veio a pé e de carona. Quando chegou, em 2017, morava numa casa abandonada do Taboão. Ao passar quase diariamente em frente à empresa Ada Seguros, fez amizade com Ada Magno, que a descreve como muito educada e estudada. “Não era debochada. Tinha um coração maravilhoso.”
O primeiro pedido de Mirele foi tomar banho de mangueira na casa de Ada, também moradora do Taboão, na época. No quintal tinha um banheiro, que foi disponibilizado. Às vezes, almoçava na casa da amiga. Como retribuição, oferecia para limpar a casa. Nessa convivência, contava confidências. Mirele telefonava para a mãe, até o pai impedir as duas de conversarem. Outra tentativa de aproximação com a família, com ajuda de Ada, foi em vão. De Três Corações só sobrou um.
Ada doou cama de solteiro, fogão, roupa de cama, toalhas e objetos de necessidades pessoais. Comunicativa, Mirele pedia comida a desconhecidos e preparava refeição para os moradores da casa abandonada. Mas o acúmulo de andarilhos no imóvel, levou a prefeitura de Guaxupé a fechar o local.
Mirele passou a viver em situação de rua. Comunicativa, fez amizades, pedia e conseguia ajuda para sobreviver. Se ganhava roupa bonita, queria compartilhar com Ada. Quando ia no escritório da seguradora, ficava escrevendo. “Um dia minha mãe vai ler o que tô escrevendo pra ela.” Não se sabe sobre a postagem das cartas, mas não houve retorno.
Por opção, imposição ou sobrevivência de morar na rua, Mirele envolveu-se com droga e enfrentou as consequências do comércio e consumo desse produto. Ao mesmo tempo, mantinha a dignidade. Com dinheiro conquistado na rua, tomava banho em postos de combustível. Como pessoa transgênero, teve um relacionamento com um homem bem conhecido em Guaxupé.
Violentaram um coração
Os três anos de Mirele na cidade teve um final trágico. Uma noite, ela sofreu muita violência física. Somente depois de 24 horas da agressão, foi encontrada muito ferida numa praça do Jardim Planalto. Tomou chuva nesse período todo. Para a pessoa que ofereceu ajuda, ela solicitou que comunicasse a violência na Ada Seguros.
Ada encontrou um corpo quase morto. O laudo médico da Santa Casa local apontou pneumonia e tuberculose, provavelmente causadas pelo HIV. Nos quinze dias de internação, com entubação, Ada a visitou todos os dias, mesmo quando não permitiam entrada na UTI. De início, Mirele fez dois pedidos. Queria que avisasse o parceiro sobre a internação. Ele foi informado, mas não compareceu no hospital. Também pediu para ser enterrada com um vestido amarelo de Ada, que tinha bojo. Era para ser vista com seios, mesmo depois de morta.
Mirele morreu em 2020. Ada tentou localizar os pais em Três Corações, com ajuda da polícia de lá. Os pais tinham mudado de endereço, e talvez de município.
Sem documentação, seria enterrada como indigente. O funcionário da funerária perguntou se Ada e os três acompanhantes queriam a abertura do caixão. O corpo estava com o vestido amarelo, flores na mão e cavanhaque. Ada perdeu o controle e chorou muito por essa falta de respeito. Não é um Leve-me na memória digno para uma transgênero. Uma depilação facial leva alguns minutos. O funcionário alegou que essa questão deveria ser resolvida na funerária, mas não havia mais tempo. O cavanhaque foi mantido.
Depois de uns seis meses, ou menos, o corpo de Mirele não estava mais no local em que ela foi enterrada.
Não há fotos de Mirele. Era morena clara, com aproximadamente 1,75 m e um corpo magro com curvas de mulher. (Silvio Reis)